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você precisa ler "os pássaros (1963) se fosse bom"

o meu recorrente comentário "esquisito que não tem lésbicas aí" me coloca em uma situação meio menino e o lobo. eu sempre falo a verdade mas acho que não me levam muito a sério. mas não fui eu a primeira pessoa a falar em voz alta que annie e melanie deveriam viver um romance lésbico quando eu assisti os pássaros com a minha amiga. é um negócio palpável.

a gente não gostou muito desse filme. ele é, com todo respeito ao hitchcock, bem flopinho. gays são uma parte essencial de um bom hitchy, vide rope (1948) (traduziram esse filme pra festim diabólico aqui no brasil?? ok). ele é o tipo de filme que coloca algumas questões na sua cabeça. e se não tivesse aquele começo chatérrimo com o advogado? e se a annie fosse mais importante e não morresse offscreen? e se, hipoteticamente, os pássaros fosse bom?

é isso que se propõe a responder a húngara naómi kovács em seu conto intitulado com toda confiança "os pássaros (1963) se fosse bom". olha, eu não sei se é 100% ético fazer esse post. eu li uma tradução durante um date com uma mina envolvida na publicação de uma antologia da autora (pela primeira vez na língua portuguesa!), então meu acesso não foi exatamente lícito. mas quantas pessoas leem meu site? o que é o pior que pode acontecer. e de qualquer forma quem vai saber que eu não li no húngaro original. isso é basicamente publicidade grátis: fiquem de olho, vem aí (eventualmente. não sei quando), podem comprar sem medo.


eu imediatamente quis escrever sobre ele, mas me perdi na estrutura. se eu escrevo sobre um conto derivativo, preciso explicar o material original? preciso explicar o que muda? "os pássaros (1963) se fosse bom" enxuga o filme mantendo só o essencial, o que talvez só seja possível porque o material original existe. enrolei tanto tentando encontrar a melhor forma de escrever que os detalhes foram se perdendo e eu não tenho mais certeza do que eu lembro e do que eu inventei.

I

melanie no barco, voltando da casa de mitch, pensando em pernoitar na cidade—

pensando em annie, nas conversas que podem ter à noite.

e então o primeiro ataque, ainda natural, em pequena escala.

não quer dizer nada.

II

camisola emprestada, uma segunda pele, o cheiro da outra mulher.

luz baixa, brandy, uma tentativa de aliviar a tensão (impossível agora ignorar os ataques).

annie fala sobre mitch. melanie imagina os dois trocando beijos naquela sala. a sombra (sua sombra) caindo sobre annie.

III

ela não dorme. conta pássaros noturnos, uma processão de corujas, olhos brilhando no escuro.

IV

o mundo parece esperar com melanie.

ela percebe o silêncio que preenche o ar, agora que os pássaros não cantam.

acende um cigarro pra marcar a passagem do tempo.

talvez ela seja a única pessoa naquela cidade. annie desapareceu assim que cruzou as portas da escola. bodega bay inteira vai desaparecer assim que sair do seu retrovisor, levando os pássaros e annie consigo.

se ela entrasse na escola, tirasse annie de lá, levasse ela pra são francisco, longe desses pássaros e sem nunca mais sair de seu campo de visão, se annie— se ela e annie—

talvez seja ela quem desapareça assim que annie deixe de ver seu carro da janela.

melanie treme. o sol sumiu.

entre nuvens. entre nuvens. ela não precisa olhar e comprovar. ela não ouviu os sons de asas.

V

é claro que culpam ela pelos ataques.

ela sabe que é verdade.

(é possível reprimir uma coisa até ela se tornar maior que você.)


2025

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